sexta-feira, outubro 26, 2007

PALAVRA A PALAVRA


MARÇO
Outra margem

E com um búzio nos olhos claros
Vinham do cais, da outra margem
Vinham do campo e da cidade
Qual a canção? Qual a viagem?

Vinham p’rá escola. Que desejavam?
De face suja, iluminada?
Traziam sonhos e pesadelos.
Eram a noite e a madrugada.

Vinham sozinhos com o seu destino.
Ali chegavam. Ali estavam.
Eram já velhos? Eram meninos?
Vinham p’rá escola. O que esperavam?

Vinham de longe. Vinham sozinhos.
Lá da planície. Lá da cidade.
Das casas pobres. Dos bairros tristes.
Vinham p’rá escola: a novidade.

E com uma estrela na mão direita
E os olhos grandes e voz macia
Ali chegaram para aprender
O sonho a vida a poesia.


FEVEREIRO
Princípios
Podíamos saber um pouco mais
da morte. Mas não seria isso que nos faria
ter vontade de morrer mais
depressa.


Podíamos saber um pouco mais
da vida. Talvez não precisássemos de viver
tanto, quando só o que é preciso é saber
que temos de viver.


Podíamos saber um pouco mais
do amor. Mas não seria isso que nos faria deixar
de amar ao saber exactamente o que é o amor, ou
amar mais ainda ao descobrir que, mesmo assim, nada
sabemos do amor.


Nuno Júdice



OUTUBRO

Isto

Dizem que finjo ou minto

Tudo que escrevo.
Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,

O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio

Do que não está de pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir?
Sinta quem lê!

Fernando Pessoa


NOVEMBRO



Confiança



O que é bonito neste mundo, e anima,


É ver que na vindima


De cada sonho


Fica a cepa a sonhar outra aventura...


E que a doçura


Que se não prova


Se tranfigura


Numa doçura


Muito mais pura


E muito mais nova...



Miguel Torga



DEZEMBRO

Natal Chique

Percorro o dia, que esmorece
Nas ruas cheias de rumor;
Minha alma vã desaparece
Na minha pressa e pouco amor.

Hoje é Natal. Comprei um anjo,
Dos que anunciam no jornal;
Mas houve um etéreo desarranjo
E o efeito em casa saiu mal.

Valeu – me um príncipe esfarrapado
A quem dão coroas no meio disto,
Um moço doente, desanimado…
Só esse pobre me pareceu Cristo.


Vitorino Nemésio
Portugal


JANEIRO

Estações do Ano

Primeiro vem Janeiro
Suas longínquas metas
São Julho e são Agosto
Luz de sal e de setas

A praia onde o vento
Desfralda as barracas
E vira os guarda-sóis
Ficou na infância antiga
Cuja memória passa
Pela rua à tarda
Como uma cantiga

O verão onde hoje moro
É mais duro e mais quente
Perdeu-se a frescura
Do Verão adolescente
Aqui onde estou
Entre cal e sal
Sob o peso do sol
Nenhuma folha bole
Na manhã parada
E o mar é de metal
Como um peixe-espada

Sophia de Mello Breyner Andresen








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